MEMÓRIAS DOS 7 AOS 77 (1)


CAPÍTULO 1

Vou agora contar certas passagens da vida, desde que eu era um esperto rapazinho mineiro, até vir a ser um céptico setuagenário, tanto mineiro quanto paulista.
E começo referindo, sem muito comentar, os princípios do rapazinho nascido e criado em época pacífica, entre a gente sossegada de uma cidadezinha apenas animada pelas emoções do amor natural, e por aturadas desavenças partidárias. Ao mesmo tempo irei narrando uns doridos dramas de almas ressentidas, dos quais só resta o cenário: a comba e a lomba dos montes, os plainos descampados, o côncavo dos vales, coisas que somente um coevo poderá reconstituir  eu por exemplo, ainda vivo neste momento. Também vou relembrar a natureza, as paisagens, os vivos e os mortos que tão funda influência exerceram naquele rapazinho, durante o último quartel do século passado, na longínqua terra da sua naturalidade.
Pare pois o tempo, por enquanto, nos meados deste século, enquanto vamos lidar com a distância. 
E a distância é longa! Medeia entre esta vasta e febril metrópole e a minha velha aldeia natal, orgulhosamente chamada cidade de Pousoalegre, quieta e escondida entre montes sul mineiros. Tranquilos montes que vêm das serras que se recortam nos horizontes do norte e, de lomba em lomba, morrem na encosta onde a cidadezinha se acomoda.
Vivíamos lá muito apartados, sozinhos, olhando o mundo de longe, através de notícias atrasadas. Com a nossa crédula naturalidade, falávamos das setenta e duas léguas a que ficava Ouro Preto, distância que jamais se percorria naqueles tempos, mas se media de povoado em povoado, simples direção no rumo do norte, por onde se poderia alcançar, ousando-o, a capital da província. Ficávamos também a outras tantas léguas da Corte, na direção do mar. Desse lado, as nossas comunicações eram feitas pelas velhas estradas da Mantiqueira que, dobrando a sua grande cordilheira, vertiam para o vale do Paraíba, vagamente chamado Serra-Abaixo. Uma delas, a mais frequentada, por onde passava a linha de estafetas a cavalo e transitavam tropas e viajantes, transpunha o Sapucaí-guaçu e corria dali por Santa Rita do Vintém, Vila Nova, Piquete, no rumo de Lorena, ponto de descarga das malas postais do Rio e de São Paulo. A outra estrada, menos batida, meio arruinada, cortava pelo lugar dos Ouros, Paraíso, Barreira Santo Antônio no pico da serra, e descia para Pindamonhangaba, à margem do Paraíba.
Florestas, campos, serranias, ermos sem limite nos cercavam por todos os lados. Nada mais dispúnhamos para nos comunicar com o próximo, além das duas estradas galgando, escarpadas e tortuosas, a grande serra do sul.
Para as comunicações interiores tínhamos, pelos quatro ventos da cidade, os desertos caminhos da Comarca por onde transitavam à pé, de seis em seis dias, os estafetas municipais.
Estávamos a trinta léguas da Estação Boa Vista, o ponto mais próximo da Estrada de Ferro Pedro II... Aqui está o maior progresso da época, mas pouco útil e proveitoso à nossa matuta gente, visto que só o conheciam e aproveitavam, tropeiros, comerciantes, políticos, que por ofício e negócios se aventuravam fora das raias de Pousoalegre. Mulheres, rapazes e moças daqueles confins nem ideia faziam do trem de ferro! O mais ilustre homem da cidade, o Dr. Joaquim Bernardes da Cunha, notável jurisconsulto, conhecido na vasta metade da Província, fugia de tal progresso que lhe contendia com os nervos. Formou-se em direito, foi deputado provincial quando moço; venceu a cavalo as distâncias de São Paulo e Ouro Preto, depois meteu-se em Pousoalegre, fechou-se em casa e não quis saber do mundo com o seu progresso.
Viajava-se tradicionalmente a pé, a cavalo ou de liteira carregada por mulas, quando se tratava de conduzir velhos, crianças e doentes. Não possuíamos veículos de transporte, a não ser o desconjuntado trole no negociante Batista; afora ele, o carro de bois, o carrinho de carneiros, a carroça do Capitão Caetano Lopes, puxada por um cavalo, única e memorável carroça existente no vastíssimo município de Pousoalegre!
Todos possuíam cavalos, e às vezes mais de um, cuidadosamente tratados em estrebarias particulares, destinados a viagens e passeios. Passear a cavalo era costume dos homens e mulheres da boa sociedade. Na placidez das longas tardes, em noites de luar, viam-se cavaleiros solitários, ou em grupos, percorrendo as ruas suburbanas e as estradas do campo nos arredores.
O médico visitava os doentes a cavalo; o fiscal da Câmara funcionava cavalgando um pequira-russo. O diretor do colégio e outras pessoas abastadas do Rosário, quando saíam a negócios no Largo, montavam vistosos cavalos de cocheira.
Mas, correndo por vales, caídas, planícies e matas desbravadas, as duas estradas serranas nos comunicavam com o mundo por volta dos tropeiros, ou quando nos chegavam, de três em três dias, ao cair da tarde, as malas do Rio.
Seria melancólica a existência em tão remotos lugares, se não estivéssemos tranquilamente habituados a ela, se não vivêssemos por lá desde todos os tempos, com os olhos pregados nos mesmos horizontes e se aquela mansa paisagem não nos pacificasse a alma e os dias, tolhendo-nos a imaginação e as ambições. Em Pousoalegre não reinava o criador desejo das coisas impossíveis. Nossos pais não nos mandavam procurar o mundo; nossa pobreza era geral, geral a fartura de comida, por isso raros os que ousavam mandar filhos aos estudos. Alguns rapazes, pouquíssimos, procuravam o comércio do Rio; um foi à guerra do Paraguai e, vivo ou morto, lá ficou. Não obstante, tínhamos a vaidade de contar um médico e quinze bacharéis entre os filhos do lugar... Por coincidência puramente numeral, Pousoalegre contava também um harmônio e quinze pianos, mais ou menos envelhecidos e de segunda mão, salvo o Pleyel do Juiz Municipal, novo em folha, e único, pois ninguém lhe tocava nem o tocava.

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Estendia-se Pousoalegre espalhada no dorso das três colinas que descem longamente do norte e morrem nas ribas tortuosas do Mandu. No tope da colina central, dominando a paisagem, ficava o cemitério com suas taipas caídas em muitos lances, carcomidas noutros, onde os túmulos enegrecidos se escondiam, sem epitáfios, no matagal das ervas bravas. Pelo velho portão, de que só restavam os esteios, passava o trilho dos animais que costumavam pastar entre os combros avermelhados das covas... Desterro esquecido, onde durante meio século se esconderam os obscuros defuntos de Pousoalegre!
Não longe dessas ruínas, na chapada do monte, ajuntavam-se entre matos rasteiros as espeluncas e casebres das Cruzes, bairro de caboclos, negros, perdidas, pinga e desordem.
Logo abaixo do cemitério, em chão escavado, erguia-se a capelinha do morro, com o seu cruzeiro de pau fincado num monte de pedras, entre dois postes com lanternas de vidros... Mirante de Pousoalegre olhando para as remotas cordilheiras do sul! Retiro de passeantes contemplativos, amigos do longínquo; encontro dos encolhidos namorados da aldeia, terreiro de alegria das crianças que corriam, saltavam e rabiscavam nas paredes da capela, onde os grandes também deixavam a lápis nomes, versos, queixumes, uma ou outra palavra torpe.
Morro abaixo estendiam-se sucessivamente a extravagante e tortuosa Rua do Morro, o Largo do Mercado e o da Matriz, deserto de gente, arborizado de cinamomos e casuarinas, formando uma aleia ramalhuda, fechada ao fundo pela velha igreja de taipas. Lá se levantava o cruzeiro sombrio, fincado na terra, onde os penitentes da roça depositavam as pedras votivas que conduziam na cabeça, acompanhando procissões. Depois a Rua do Imperador, o Largo da Cadeia, e daí por diante, até à margem do rio, desalinhada e agreste – a Rua da Ponte.
À esquerda e à direita, corriam paralelas outras duas apertadas duas, com casas de um só lado, casas antigas, de paredes lisas e caiadas, enfrentando os muros irregulares do fundo dos quintais do Largo, cada um com o seu desengonçado portão. Como estas, as outras ruas e travessas aparentavam abandono; cobertas de capim e de mato, sulcadas de trilhos por onde se transitava, ou cortados pelo rasto areento das enxurradas. Ao longo dos muros, rasos e sem fim, cresciam livremente a cicuta e a bordana, emaranhavam-se as moitas espinhosas das roseiras bravas.
Eis aí o centro de Pousoalegre onde ficavam as melhores casas e residiam os mandantes e possidentes, os juízes, o vigário, o médico, os lojistas, o farmacêutico, a gente do Fôro e da Câmara; também lá se encontravam, em meia atividade, a Matriz, o bilhar, o mercado, o teatro e o curral do conselho.
Partindo da Rua de Trás, um aterro chamado Rua dos Coqueiros, alongava-se através de brejais até o morro da Outra Banda. Nesse ponto levantavam-se os velhos muros que deram nome ao lugar: altas e grossas taipas sobre alicerces de pedra, em cujos cimos gretados vegetavam raquíticos, em confusão, o fedegoso, o cacto e a carqueja. Por fim, até à distante porteira do Engenho, seguia a rua semi-estrada, formando com a sua fileira de miseráveis casebres o bairro das Taipas.
Vem a propósito contar-se que os nomes oficiais das ruas e praças de Pousoalegre eram ignoradas do povo e só constavam nas atas da Câmara Municipal. Isso porém não embaraçava os práticos munícipes, que aplicavam a elas os nomes dos seus moradores mas conhecidos: Rua do Seu Caetano, Beco do Zé Inácio, Baixada do Reis.
Por fim, a fechar o harmonioso e recolhido panorama da cidade – a extensa e rasa colina do ocidente, onde se espalhava o alegre bairro do Rosário. No centro desse povoado, entre casas de todos os aspectos e muros carcomidos, abria-se um inculto largo, cruzado em xis por dois trilhos cortando-lhe o mato de guaiuxumas e joás. No enredado de outros matos, erguia-se um cruzeiro encravado em base de pedras deslocadas, fronteiro à igreja sempre fechada, ameaçando ruína. Mais adiante, a Casa de Misericórdia, sem enfermos, sem provedor, sem haveres. Depois, a confusão das pequenas habitações, construídas espaçadamente e, por toda a parte, os tradicionais muros de Pousoalegre, ladeando ruas desertas, abandonadas.
Atravessando um vale aberto, três ruas desabitadas comunicavam o Largo com o Rosário, e no fundo do vale corria um córrego anônimo, coletor de enxurradas e divisor de classes, mantendo separados os dois bairros rivais – o lido e limpo, o analfabeto e pé-rapado. Os habitantes do Largo, miolo da sociedade, gente de sapatos, bailes, piano, jogos de prenda e roupas do alfaiate, afastavam-se afetadamente do povinho do Rosário. O povinho era a casca anônima da população; pedreiros e costureiras, vadios e engomadeiras, lavadeiras e toda a sorte de gente que vive do trabalho vário e miúdo. Numerosa gentinha, pobre e desarrumada, infalível em festas de rua e circo de cavalinhos, que não mandava nem era mandada.
O certo é que a falada separação social, entre o Largo e o Rosário, não passava de bazófia de um lado e timidez do outro. Sabíamos todos que as matronas do Largo não passavam sem a prestante amizade das quitandeiras e doceiras, comadres e conhecidas do Rosário, a quem costumavam visitar, em dias bonitos, acompanhadas do rancho da filharada. E as conhecidas e comadres, em retribuição, passavam os seus domingos nas casas do Largo, quando não eram chamadas a auxiliar nos enxovais das noivas, festas de casamento, partos, batizados e doenças de crianças.

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Pousoalegre, na sua estacionária infância de cidade, aninhava-se familiarmente nas caídas de uma serra oculta nas alturas do norte. Envolvendo-a, circundando-a por todos os lados, alongava-se verdejante a paisagem natural, onde o gado medrava livremente.
Sob um céu perenemente azul, centenas de sassafrazes, redondos como carapinhas verdes, espalhavam-se nos arredores, pela subida dos campos. Na direção do sul, dilatava-se o vargedo do Mandu, geralmente chamada Vargem, logradouro municipal, pastagem pública onde se apascentavam confundidas as vacas da comunidade.
Os habitantes do Largo, possuidores de escravos, davam-se à comodidade de ter a sua vaca leiteira, nutrida e mansa, solta nos gramados da Vargem. Então, ao cair da tarde, elas em grande número, com as respectivas crias, entravam na cidade pela Rua da Ponte, passo a passo, uma atrás da outra, até ao Largo da Cadeia. Dali partiam à procura da querença dos portões em que costumavam mascar a farta ração de restolhos. Separavam-se e recolhiam-se, por fim, os bezerros, e eles berravam lamentosamente, do outro lado dos portões fechados. Um berreiro de curral enchia a cidade, porque as vacas também mugiam, mas acabavam procurando o Largo da Matriz, onde se ajuntavam para dormir.
Ouviam-se nos quintais as despedidas dos galos e os derradeiros mugidos. No escuro do campanário, sob a morte-cor do céu, o sino grande, de badalada em badalada, tocava a Ave Maria. As vacas se deitavam no chão da praça e a noite fechava.
Mais que gente, andavam os animais pelas ruas e praças de Pousoalegre. Mulas e cavalos querenciados subiam da Vargem para o povoado, onde se espalhavam pastando o verde das ruas e becos desabitados. Cabras domésticas se ajuntavam no adro da igreja, à sombra estendida das paredes; galinhas e, às vezes, porcos, revolviam o lixo das casas despejados pelos portões dos fundos.
Todas as tardes, com surpreendente pontualidade, viam-se subindo a Rua dos Coqueiros os gansos do vendeiro Getúlio. Quando o Sol já se escondia atrás dos cinamomos, os seis gansos em bando, o macho à frente, silenciosos, pausados, altaneiros, apontavam Na esquina do Largo da Matriz. Ninguém jamais os viu procurando pasto pelas ruas; seguiam sempre, no mesmo rumo, de cabeça erguida, um imutável itinerário através das ruas, até alcançarem de novo a Rua dos Coqueiros. Se acaso os garotos os perseguiam, eles abriam as asas de par em par e punham-se a correr desajeitadamente, soltando uma grasnada ameaçadora; depois sossegavam, juntavam-se e prosseguiam, pacíficos no seu fatal e misterioso passeio!
O jornal reclamava em termos sisudos contra os animais vagando pelas ruas; meu tio Luiz escrevia folhetins irônicos, a Câmara fazia-se de surda, apenas o fiscal, lá um ou outra vez – por despique político – mandava encantoar uma cabra liberal. Como, porém, o emperrado portão do curral do conselho não funcionava, a cabra era enfiada por uma brecha do muro, que se tapava com pau de lenha, mas os garotos errantes empurravam o tapume, a cabra escapulia e voltava a ruminar, deitada entre as outras, à sombra do adro.
Cantavam galos nos terreiros, e mil pássaros de longe, vinham cantar nas árvores da praça e dos quintais. Na primavera, um pássaro-preto se aninhava nos beirais da igreja, e desde que o Sol nascia, assobiava no tope da cruz de ferro, alegrando a manhã. Em abril, ao romper do dia as andorinhas coalhavam o largo telhado da Matriz; o sol cintilava numa onda azul ferrete de penas luzidias, e de súbito as andorinhas partiam chilreantes, perdiam-se na luz, e de súbito tornavam ao seu telhado negro sob o céu azul... Em todos os setembros, um conhecido sabiá cantador quebrava com o seu querido canto o silêncio das laranjeiras. Nos dias azuis, iluminados, o Largo modorrava acalentado pelo gorjeio dos canários e pintassilgos; as apressadas rolinhas do chão mariscavam na praça deserta, e uma juriti desgarrada esgaravatava estrume, ao lado dos pombos criados sem dono nos telhados da cidade.
Por trás dos muros, aos fundos das casas, verdejavam os pomares, as hortas e os jardins. A paisagem campestre dos arredores, as aves, frutas, flores, ervas e a criação, nos mantinham em contato íntimo e permanente com a natureza, enlevados na plantação. Por isso não nos passava pela mente vender as frutas, nem as ervas, nem as flores; tínhamos por costume a espontânea cortesia de mandá-las de presentes aos nossos vizinhos, aos amigos e aos parentes.
Pousoalegre inspirava todos os sentimentos, menos a saudade, porque ninguém a recordava de longe, no tempo e na distancia, ninguém de lá saia...
Eis o que, agora, me lembra para contar da minha aldeia natal. O pouco que conto e as pequenas coisas lembradas são o muito que eu sabia, pois não conhecia outras terras, outras gentes, nada mais conhecia.