AUTO DE PERGUNTAS

Conto de Amadeu de Queiroz


Para reanimar um tresnoitado não há como o madrugar tranquilo dos campos!
O clarão marasmado no horizonte; o esfumado da paisagem, a imobilidade das árvores à beira dos caminhos cheios de sombras e o silêncio envolvente que desce vagaroso dos cimos iluminados produzem o bem-estar triste e a paz íntima que induzem aos pensamentos estranhos, ao cansaço da vida... Talvez por isso já não me lembrava de uma noite passada ao lado da febre, ouvindo tosses e gemidos, e regressava ao passo animado da "Espada", entregue aos frívolos pensamentos matinais que nos compensam, por instantes, dos sofrimentos do corpo.
E pensava, sugestionado pelo silêncio umbroso da alvorada: não há, decerto, nos matos, a quantidade fantástica de pássaros que consta das narrativas, dos versos e das descrições que fazem os sonhadores de selvas encantadas. Os pássaros que moram nas árvores, numerosos e variadíssimos – só se mostram aos poucos, de um em um, espalhados por toda a parte, em voo inesperado e fugaz... Cantam isoladamente – um aqui, outro ali – jamais na lírica orquestração dos poetas que celebram a natureza, de pena em punho, a poder de cigarros, no recolhimento astucioso dos gabinetes. Se eles se quedassem ao silêncio das auroras, ouviriam somente um pio lá, outro além, suave, repetido, contínuo, em surdina com a luz nascente...
Mas voltemos à vida, à estrada e ao cansaço – coisas que andam sempre juntas – e pensemos, enquanto o cavalo regressa contente ao seu curral, no que se deve fazer a uma pobre moça que se ficou a morrer de pouco em pouco.
Talvez, naquele instante, outros pássaros cantassem nos bosques afastados e outros pensamentos frívolos me voltassem, porque o silêncio da manhã era cada vez maior... Subitamente se fez imenso, quando ouvi, na monotonia das cantigas matinais da paisagem, um berro melancólico, um berro de alarma e piedade, saído de garganta rouca...
– Ó das almas! Ó das almas!
E passou por mim um cortejo sinistro, vindo das sombras da encruzilhada. Dois homens conduziam, a trote rápido, uma rede de defunto e, acompanhados por um outro, no mesmo andar, lá se iam em direção à vila. Quando passaram por mim, perguntei:
– Quem vai aí?
– O Zé Faustino.
– Que Zé Faustino?
– O peão.
– De que morreu?
– De faca...
E lá se foram, estrada em fora, mais rápidos que o meu cavalo, a trotar, conduzindo um fardo tão lúgubre como o clamor no silêncio da madrugada:
– Ó das almas! Ó das almas!
É assim que eles costumam conduzir os seus mortos... Quando morre alguém, nos bairros afastados, passam os vizinhos a velar e a jogar, animados pela "fervida", enquanto o defunto enrija entre duas velas. Antes de romper o dia, amarram o cadáver com um lençol ao longo dum pau roliço, e cobrem-no depois com outro lençol atado na extremidade da vara. Terminada assim a rede, viram num golpe a última tigela de pinga, sublevam o fardo e partem para a vila a passo acelerado. De caminho, quando avistam, ao longe, alguma casa à beira da estrada, chamam em altas vozes:
– Ó das almas! Ó das almas!
Então saem das casas outros homens, vestindo à pressa o paletó, alcançam o cortejo que vai passando e, sem detê-lo, tomam a rede nos ombros e prosseguem no mesmo andar. Os que vêm retrocedem, enquanto os moradores da estrada, despertados ao clamor plangente, vão se rendendo e, assim, rapidamente, dão com o justo na cova...
Quando voltei à casa, já me aguardava o estilo autoritário do delegado de polícia, numa intimação para o auto de corpo de delito. Em obediência ao estilo e à minha contingência, fui a ele.
No corpo da guarda da cadeia, sobre uma mesa de pinho, jazia descoberto o cadáver de Zé Faustino. Várias exclamações  eram ouvidas, vários quesitos foram propostos, mas havia uma facada só, profunda, na região da clavícula esquerda. Com a rijeza da morte, a epiderme do cadáver contraiu-se e a ferida transformou-se numa boca lívida...
– Este foi bem alinhavado – disse o escrivão, alinhavando, por sua vez, o auto.
Dali passamos à sala onde nos aguardavam as exigências da lei, na pessoa de um alferes mulato. Satisfeitos, a lei e o mulato, ia eu a sair, quando o meu companheiro de intimação e auto, querendo que também o acompanhasse em sua curiosidade, me induziu a ficar, farejando um drama ensanguentado no auto de perguntas a que se ia proceder.
O homem, pronto a responder à lei mestiça e empertigada, tinha aspecto simpático, uns ares tímidos, e mais parecia um covarde que um assassino sanguinário.
– Como se chama? – perguntou-lhe o delegado.
– Pedro Barbosa.
– Que idade tem?
– Trinta e cinco anos.
– Qual o seu estado? É casado, solteiro ou viúvo?
– Eu... Sou casado.
– Qual a sua profissão? Em que cuida, qual o seu meio de vida?
– Vivo de jornal. Sou camarada viajante; trabalhador de enxada, trançador de couro cru e tirador de madeira.
– Onde nasceu?
– Aqui mesmo, na vila. Não tenho pai nem mãe e fui criado pelo meu falecido padrinho, Seu Capitão Luís Lopes.
– Sabe por que está preso?
– Sei, sim, senhor.
– E o que tem a dizer sobre o motivo por que está preso.
– Nada, não, senhor.
– Pois então não matou o Zé Faustino?!
– Matei, sim, senhor.
– Diga então o que sabe; esclareça a Justiça sobre esse fato.
– Eu lhe digo, sim, senhor... O caso todo o mundo já sabe. Eu mesmo vim, de livre vontade me entregar, porque a gente paga aqui mesmo o mal que faz... Eu até já estou principiando a ficar arrependido do mal que fiz, mas como não tem mais arranjo para a morte do outro, eu é que devo pagar...
– Não é isso. Conte o caso como foi.
– Não vê que esse Zé Faustino e eu fomos sempre amigos, desde o nosso tempo de moleque, aqui na vila? Quando morreu o meu padrinho, fui trabalhar na fazenda do Seu João Luís – irmão dele – e depois fiquei morando nela, de agregado, numas terras na beira do caminho. Há dois anos – eu já era casado – o Zé Faustino empreitou com o Seu João Luís um terno de mulas para domar... O Zé Faustino era peão; desde rapazinho ele gostava de animal e, como era muito corajoso e esperto, num instante fez nome... Mula que ele não quebrava, não tinha arrumação! Mas – que Deus tenha a sua alma em bom lugar – era muito atrevido e useiro em mexer com mulher dos outros. Em todo caso, no tempo que ele esteve na fazenda, amansando as mulas, fomos sempre amigos; tanto que, todos os domingos, caçávamos juntos no mato e de tarde ele ia jantar na minha casa comigo e mais a minha companheira. 
Mas eu não cheguei a ver nada de desconfiar. Daí, a minha mulher é uma moça séria, duma qualidade de gente boa que tem da outra banda da serra. Nós casamos por inclinação e, com a benção de Deus, estávamos vivendo na paz do trabalho da família. Para minha mulher nunca faltou nada em casa, nem agrado. Mas porém, o Zé Faustino levou tempo amansando os animais e tantas vezes jantou comigo que, por fim, desconfiei dele. Daí, era jeitoso para lidar com saia, e minha mulher, não digo que facilitou nem deu corda, mas era boba – toda gente boa é assim – e o Zé Faustino aproveitou... Por felicidade nossa, o trato da domação acabou e ele voltou para a vila. Com o tempo me esqueci do caso que já ia me enfezando; minha mulher continuou sempre boa para mim e ficamos em paz, graças a Deus!
– Mas e o caso de ontem? – reclamou a impaciência do alferes.
– Há coisas de dez dias, o Zé Faustino voltou para repassar uns cavalos da fazenda. Procurou outra vez a minha casa; entrou, conversamos os três juntos, tomou café e, daí, voltou todas as tardes, depois que acabava o nosso serviço.
Não gostei nem um pouco daquelas visitas, porque ele estava agora mais confiado e a minha mulher mais enlevada nas patranhas dele... Eu não cheguei a ver nada de comprometer nenhuma honra, mas fiquei de pé atrás e comecei a sentir que já estava me voltando o mesmo enfezamento que tinha passado... Ontem cedo, fui chamado na vila para fazer uma viagem de próprio, mas a pessoa não precisava mais do meu serviço porque já tinha recebido a resposta da carta. Então voltei para casa... Antes Deus me tivesse matado no meio do caminho!
Assim que cheguei em casa, fui entrando sem cuidar no precipício que estava me esperando lá dentro! Não sei o que entrou no meu corpo quando esbarrei no Zé Faustino, sentado na canastra, com a minha mulher no colo! O demo tomou conta de mim duma vez e me empurrou, sem juízo, para o lado deles. Minha mulher se levantou num repente, tremendo alvoroçada, e ele nem se levantou da canastra! Aí, eu disse: “Sai daqui, desgraçada, segue tua sina... Mas este maldito nunca mais há de sujar casa de ninguém”! 
Então, seu alferes, me cheguei peito a peito, e mandei o cujo pros quintos!
– Seu escrivão, escreva...

*Extraído do livro "Os casos do carimbamba" (1939).