TESTEMUNHA JURADA

Conto de Amadeu de Queiroz


Modesto Maia, farmacêutico, casado, natural e residente nesta vila, com a idade que diz ter de cinquenta anos, sabe ler e escrever. Testemunha jurada aos Santos Evangelhos e aos costumes disse nada. 
Perguntada sobre o que sabe com referência ao homicídio praticado em dias do mês findo, na pessoa de Nazário de Tal, respondeu dizendo: Que, no mês passado, em dia que não pode precisar, foi chamado a prestar serviços médicos a uma pessoa moradora Cervo-acima, e para encurtar caminho tomou pela estrada que passa no lugar chamado Cafurete, onde existe uma venda, mesmo à subida do morro. Aí chegando em hora de muito sol, quando a estrada sem sombras ardia no meio da poeira que toldava o ar limpo do campo, ele depoente, sentindo-se cansado e cheio de calor, resolveu portar e tomar um mata-bicho. Amarrou o seu cavalo debaixo de um magnífico sassafrás que existe ao lado da venda, encaminhando-se, em seguida, para ela.
Ao assomar à porta, foi alegremente saudado por uns três ou quatro homens que ali se achavam, todos pessoas conhecidas dele depoente, inclusive o culpado.
Disse a testemunha que, logo ao entrar, sentou-se em um caixão que estava encostado à parede, ao lado do balcão, sendo-lhe oferecido por um dos presentes um gole, o que ele depoente aceitou de bom grado, considerando, porém, não ser muito apreciador de pinga pura, preferindo a temperada com limão e açúcar, ao que respondeu o vendeiro: "É; limão aqui não hai" – "Nesse caso venha só com açúcar". Em seguida lhe foi presente um martelo de pinga, isto é, um copo de cerca de oitenta gramas, o qual traz o nome daquele lendário instrumento de percussão, por um motivo que os folcloristas ainda não descobriram.
Neste comenos, a testemunha foi interrompida pelo Senhor Juiz, o qual a advertiu dizendo não serem permitidas as divagações inúteis, em nada interessantes à Justiça, muito principalmente as intencionalmente satíricas, ao que a testemunha objetou, lembrando o dizer de São Gregório: "O espírito humano não pode estar sem recreio; ou se deleitará com as coisas sublimes ou com as coisas pequeninas". Também Horácio afirmava nada impedir o dizer-se a verdade rindo...
Tornando, em seguida, às suas declarações, disse que, depois de esvaziado o martelo e de repetidas marteladas com que os circunstantes resolveram acompanhá-lo, a conversação generalizou-se animada e amistosa – na confraternidade da pinga – versando sobre o tempo, o doente do Cervo-acima, a falta de limoeiros na vizinhança e um estrepe de meio palmo – medido – que entrou na perna da caseira do Quarteirão...
Pela segunda vez o Senhor Juiz interrompeu a testemunha, fazendo-lhe lembrar que não deveria alongar-se, afastando-se da narração do fato principal, porquanto as suas considerações, como já foi dito, nada adiantavam ao esclarecimento da Justiça. Ao que atendeu a testemunha, concordando inteiramente, mesmo porque o dito Horácio costumava dizer aos moradores: "Sê breve e agradarás". E após escusar-se pelas suas frequentes citações de homens ilustres, continuou depondo.
No momento em que se dispunha a prosseguir viagem e umas vagas eliminações do refresco começavam a aquecer-lhe o sangue, viu chegar à porta da venda e apear-se um rapaz alto, bem feito de corpo, barbudo e de gestos desembaraçados. Ao entrar, cumprimentou cordialmente a todos e pediu um tostão de biscoitos. Enquanto o vendeiro tirava uma penca de quatro biscoitos emendados, que estavam pendurados de um prego na prateleira, o acusado, ao receber mais outra medida de aguardente, dirigiu-se ao recém chegado perguntando-lhe:
– Vamos matar o bicho, conhecido?
– Não senhor, eu não tenho costume – respondeu o outro.
– Uai! Costume a gente pega.
– Mas eu não quero pegar e nem beber.
– Pra me agravar?
– Eu não agravo ninguém, quanto mais gente que não conheço. Beba sozinho.
O réu presente fez cara de quem não gostou da resposta e encaminhou-se para o outro, com a medida de cachaça na mão, dizendo: 
– Mas eu gosto de repartir.
– E eu gosto de ajuntar – retrucou o Fulano.
Como tenho a experiência dos anos e conheço os costumes deste povo – e sei a que altura, às vezes, vão parar tais oferecimentos de mata-bicho, intervim dizendo ao Fulano Nazário:
– Beba, moço! É melhor beber...
Mas ele, dando mostras de conhecer a situação, olhou-me com ar de quem queria dizer: "Deixe esse caboclo por minha conta"! E não aceitou a bebida.
O Senhor Juiz chamou a atenção da testemunha para a sua maneira insólita de depor, explicando que, quando lhe permitiu ditar o próprio depoimento, fê-lo na certeza de que ela não fugiria às fórmulas, isto é, às frases de uso em estilo forense. A testemunha, justificando-se e prometendo restringir-se ao formulário, cujo valor não contestava, pois, também a ele depoente, as fórmulas e os formulários ajudam a viver, prosseguiu. Então o Fulano Nazário, digo, o denunciado presente, chegou frente a frente com o outro e perguntou-lhe ameaçador:
– O que é que tem ocê, que não bebe?
– Não bebo porque não quero; e porque sou homem para qualquer outro.
– Isto é cisma. Como é que não bebe?
Nesse momento, a testemunha, dirigindo às pessoas presentes, advertiu:
– Olha aí, gente! Isso vai acabar mal.
Mas ninguém a atendeu, talvez por falta de tempo, pois Nazário de Tal, que parecia ser tão bruto e tão atrevido como o culpado, cresceu para o lado dele e meteu-lhe a mão nos queixos, dizendo:
– Quem é você, porqueira?
O réu largou a pinga no balcão, arrancou da faca e foi em cima do Fulano, mas ele, num pulo para trás, caiu fora no terreiro da venda, puxando a sua faca também. Aí não esperou nada, porque este aqui presente saiu por sua vez, juntou com ele e pegaram-se, cada qual querendo esfaquear o outro. Os dois estavam peito a peito, torcendo os braços, enroscando as pernas, retorcendo a espinha, espichando, abaixando e suspendendo o corpo e ninguém chegava para apartar! Por mais que, ele depoente, gritasse e ordenasse a intervenção dos assistentes, eles não atendiam, decerto porque todos tomavam parte na luta, sentindo-se iguais na crueldade de coração, ou porque, numa hora como aquela, ninguém ouve mesmo nada, nem vê outra coisa que não seja uma tragédia de morte!
A testemunha, por sua parte, acabou perdendo a noção da realidade e ficou à espera, tão-somente da horinha, que ninguém chega a ver direito, da faca entrar até o cabo no corpo do vivo... E foi assim mesmo: de repente o culpado deu um passo atrás e o Nazário de Tal derrubou os braços, bambeou as pernas e amontoou no chão...
Aí correram todos para acudir. O depoente deu voz de prisão ao criminoso e, enquanto os outros o detinham, foi socorrer o ofendido, mas não teve que fazer mais nada porque ele tinha sido esfaqueado no sangrador. Chamaram o Quarteirão, que notificou a escolta para conduzir o preso e pediu gente para carregar o corpo para a vila. O vendeiro guardou os arreios do defunto, soltou o cavalo no pastinho e ele depoente não viu mais nada, pois seguiu o seu caminho Cervo-acima, muito impressionado com a morte que tinha acabado de presenciar, mas conformado, pensando que, como lá dizem: o castigo é coxo, mas alcança sempre o culpado...
Perguntada sobre se conhece a vítima, disse que não, pois trata-se de pessoa estranha do lugar, um passante. Perguntada, finalmente, sobre os antecedentes do criminoso, respondeu que o conhece desde menino, que o pai e um outro irmão que tem são gente boa e que, até aqui, tem sido rapaz ordeiro, trabalhador e cumpridor de seus deveres; e que não atribui o crime a nenhum outro motivo que não sejam os maus conselhos da pinga. Dada a palavra ao réu, pelo seu procurador, foi perguntado à testemunha se o criminoso estava embriagado a ponto de não ter noção dos seus atos e que, se admitia o caso de uma pessoa em seu juízo perfeito, matar um desconhecido que não a tinha ofendido de modo nenhum. 
E assim respondeu a testemunha: quanto ao estado de embriaguez, pode garantir que não era completo e que o denunciado estava apenas excitado, como – a dizer a verdade – todos os presentes. Quanto à segunda parte da pergunta, respondeu que o assassinato fora devido à rixa suscitada pelo fato de certos caboclos – frequentadores de venda de beira de estrada – costumarem oferecer pinga aos que chegam e tomarem a recusa como ofensa. Daí resultam quase sempre, a insistência, a teima e os desaforos de parte a parte, porque o outro, por sua vez, entende que aceitar é dar mostras de medo e covardia. Então arma-se o barulho e, muitas vezes, acaba em morte. Pode afirmar que o acontecimento é comum cá por estas bandas, mas afirma por ouvir contar e não por ter conhecimento próprio, porquanto, ele depoente, não é frequentador de vendas e tem o costume de aceitar sempre a pinga que lhe oferecem. 
Nada mais disse nem lhe foi perguntado.

*Extraído do livro "Os casos do carimbamba" (1939).