MANUEL XAVIER

 

Conto de AMADEU DE QUEIROZ

Um estradão, cor de tijolo requeimado, cortando campos gibosos de cupins. Barba-de-bode, sol, poeira, calor e cansaço. Depois a sombra; uma caneleira carinhosa, uma cantiga de galo, um lanço de cerca, um tico-tico e uma cuia de água fresca...
De novo a estrada, através de vargens e banhados; leitões fossando o brejo, o passo viageiro do cavalo brioso vencendo o morro, mais cupins, mais uma légua e, por fim, a encruzilhada, a porteira, o curral estrumoso e, à porta da casa, o Xavier ansiado.
O Xavier, solícito, apanhou-me o estribo, convidando-me a apear por meio dessa reverência.
– Cá estamos, com a ajuda de Deus.
­– E de um bão cavalo!
– Quem está doente?
– O Manuel Xavier – respondeu o amigo, desapertando a barrigueira do castanho.
– De quê?
– Desde ontem está passando mal; e nós estamos aterrorizados, à espera de sua chegada... Cedo, assim que saí para o serviço, que estou tocando no alto da serra, já tia Joana estava atrás, com um chamado da minha Dona. Quando entrei em casa, ele estava ruim e ruim está até agora! Caiu mofino de repente, com o perdão da palavra; destemperado e vomitando. Depois agarrou a arder em febre, largou o corpo e largado ficou... Nós já estamos sem grande esperança, mas a fé no senhor não míngua, porque não será esta a primeira vez que o senhor, abaixo de Deus, faz milagres nesta sua casa... Mas entre por favor, para ver se pode dar um jeito na vida do Manuel Xavier. Se o canjira não aguenta, vai ser uma desordem nesta casa!
Interrompi o Xavier, penetrando numa sala térrea, de janelas sem vidraças, por onde a luz dos campos entrava vertiginosamente. 
Se não estivesse uma velha mesa encostada à parede, a sala seria tanto quanto uma estrebaria varrida. Cangalhas empilhadas, arreaduras de carro encostadas pelos cantos, lombilho pendurado no portal e um bode pensativo, deitado junto a um monte de feijão.
Entramos, em seguida, num quarto também inundado da luz do sol. Havia aí uma cama larga e, de portal a portal, a rede, onde uma Dona tinha o Manuel Xavier no regaço.
Pelo que me disseram os pais, pelo que me ensinava o tino e pelo que consta dos compêndios em que aprendi a zombar da vida, combatendo com a morte, a criança estava mal, muito mal, e sem nenhuma probabilidade de arribar.
O "caso fatal", que tanto tem valido aos que conhecem de nome a ciência médica, mas não tem relações pessoais com ela, valeu-me a mim também.
O caso era, pois, fatal. Talvez mais pela violência de infecção desconhecida, que pela insuficiência dos compêndios.
A ideia de que nada mais tinha a fazer, senão presenciar a morte, ditou-me uma censura cruel:
– Cheguei tarde! Se me chamassem mais cedo, talvez ainda pudesse fazer alguma coisa...
– Mas a doença não deu tempo! Justificou o Xavier, inquirindo com as rugas da testa a mulher de olhos amortecidos.
O pequeno dormitava resfolegando; a mãe fitava-o sem pestanejar. O Xavier, de respiração suspensa, aguardava o meu alvitre, enquanto tia Joana procurava fechar uma janela.
Apesar do meu desengano formal, abaixei-me para a criança e, ao tocar-lhe o corpo que ardia em febre, ela abriu uns olhinhos vivos, luzentes, e o rosado mórbido do seu rosto mais se acendeu.
Ao contato de meus dedos, que lhe sondavam o pulso aceleradíssimo, teve um sobressalto e seu rosto afogueado passou a exprimir o susto e o medo... Susto do inesperado, medo de um homem desconhecido, ou, quem sabe? – sintoma característico de convulsões prestes a irromperem.
O certo é que, subitamente, os seus olhinhos se tornaram vesgos, revirados, e se agitaram por tremores rápidos. Dir-se-ia que o sintoma mortal aguardava minha chegada e o meu contato para explodir e fazer de uma criança linda uma sinistra rã, cujos membros trêmulos ora se dobravam, ora se distendiam.
Depois a boca se retorceu, o rosto se fez pálido e inchadas as veias do pescoço... O coração da criança pulsava tumultuosamente, a respiração era um sibilo; todo o seu corpo se inteiriçava e se encolhia e, no auge de convulsões gerais, começou a soluçar.
A expressão do seu rostinho, entristecido pela cor azulada ao redor da boca, contraída num sorriso de alegria, tinha qualquer coisa de constrangimento amargo e comovente.
E assim as convulsões chegaram ao máximo de intensidade; então os lábios da criança agoniada se tornaram roxos; a respiração acelerou-se ainda mais; os olhos se fixaram, muito abertos, no teto, e ela se imobilizou duma vez, no regaço materno, o corpo abandonado, um bracinho pendente...
O Xavier e a mulher olharam-me com um olhar angustiado em que boiavam o terror e a esperança... Por fim, abaixei-me ainda uma vez para aquele corpozinho mole e morno, procurando a vida e, num despeito comovido, murmurei:
– Morreu!...
E caiu sobre nós, e sobre a casa toda, aquele silêncio que muitas vezes presenciei e nunca pude quebrar!
Tia Joana tomou o cadáver da criança, deitou-o com cuidado no centro da cama larga e ficou a contemplá-lo longamente.
O Xavier saiu; a luz vibrava no silêncio do quarto; a mulher caiu de bruços para um lado da rede, e pouco a pouco o pranto silencioso molhou o pano onde o seu perfil se desenhava...
Voltei à sala onde o bode cochilava ao lado do feijão. Encostado à porta que dá para o curral, Xavier tinha a vista pasmada num vago ponto, perdido na vastidão do espaço... Avancei, cheguei-me a ele não sabendo o que lhe dizer, nem como distraí-lo. Pensativo, por fim, permaneci a seu lado a imaginar por onde andaria o olhar desventurado da infeliz criatura...
E vi, então, o campo; a terra; o trabalho; a casa; a mulher; o filho; a existência no recanto iluminado, onde o Xavier vivia, na lida invariável dos seus dias, na recompensa do seu amor e na calma de suas noites, escutando grilos, sapos e marulhos.
Pareceu-me, naquele instante comovente, que a alma marasmada de Xavier, por meio de um vago olhar, perguntava à paisagem:
– Para que o sol, o céu tão azul, o campo quente assim e o cavalo sonolento, à sombra do sassafrás?... A que vêm, agora, esses bois ossudos, deitados à sombra dos caminhos; o lombilho pendurado no portal e as tiradeiras encostadas ao canto da sala? Estará tudo tão parado na terra, como o calorão do Sol?... Por que nenhum vento, nenhum pinhé nos ares?... Terá parado a vida?
Mas do olhar do Xavier, imóvel e morno como a paisagem que contemplava, nenhum movimento respondia à sua alma.
Subitamente o olhar se retraiu da vastidão dos ares. Percorreu, incerto, o campo todo; baixou para a terra e veio vindo, veio vindo, até pousar em um pinto morto entre o estrume do curral!...
Então, uma lágrima encheu os olhos de Xavier e caiu, como um pingo de seiva de um tronco decepado...

*Extraído do livro "Os casos do carimbamba" (1939).