MEMÓRIAS DOS 7 AOS 77 (2)


CAPÍTULO 2

A nossa boa casa paterna, um dia fechada e abandonada por inútil, depois que os velhos partiram para a sua derradeira morada...
Nossa casa era vasta e primitiva construção dos tempos em que os primeiros povoadores de Pousoalegre desceram da Serra do Cervo. Situava-se em um dos extremos da cidade, ao pé da igreja, num canto da praça principal. Sua horta limitava-se com um fim de rua desabitada, meio pantanosa, onde crescia o agrião e corria um trilho entre a grama e o trevo daninho. A cem passos do portão do fundo, começava o outeiro do cemitério, no lugar em que uma fonte vertia inutilmente água de beber, por um minúsculo cano de ferro. Ali, no primeiro lanço de um extenso muro, abria-se o largo portão de um jardim quase abandonado, no fundo do qual se via uma casa grande, bem construída, igual às melhores do lugar. Era a fazenda situada na cidade, com a frente para a rua e os fundos para o curral e para as pastagens que subiam pelo morro até o campo do cemitério. Singular fazenda, vizinha da Matriz, onde residia um coronel, o homem mais rico da freguesia. Todos os dias lá me mandava minha mãe buscar o leite, o fubá fresco, ou pedir palhas de milho para os cigarros de meu pai e de meu avô.
Tão próximo de nossa casa ficava o pitoresco sítio que, da sala de jantar se distinguiam a folhagem dos sassafrazes do campo, o gravatá no fundo dos valados, e ouviam-se o piar das codornas e o grito angustioso dos anus. Corria de lá a viração do mato, atravessava o laboratório da farmácia e, espertando o fogo do fogão, saía pelas janelas para dançar com a folhagem das árvores da rua.
A nossa boa casa, tão alegre de dia, tão assustadora de noite! E a sua varanda, enorme, toda pintada por meu pai com paisagens sombrias, onde nos juntávamos em roda da mesa para jogar, enquanto minha mãe, sentada na rede, acalentando os dois menores, cantava a temerosa cantiga:

Fechemos a porta
Zé Gomes aí vem
Matando mulheres
Crianças também

Zé Gomes foi homem
Foi homem valente
E agora se vê
Em grossa corrente...

Ardia a única vela acesa na vastidão da casa, porque somente se iluminavam os cômodos em que se permanecia. Um de nós que tomasse o castiçal para entrar em outro compartimento, via-se logo rodeado por todos: temíamos tanto ficar um instante sem luz como entrar sozinhos num quarto escuro; por isso andávamos sempre juntos, conchegados, de um lado para outro, acompanhando a vela... O Fradinho da mão furada vagueava na escuridão!
Tudo era amplo, as salas, os quartos, a cozinha; eram grandes, a horta e o jardim... O jardim de minha mãe, atapetado de musgos, onde floresciam confundidos o goivo roxo, o cravo rescendente e as roseiras plantadas em largos canteiros, por entre as hortaliças do quintal, ao longo dos muros e das paredes da casa.
Minha mãe, com um chapéu de palha na cabeça para se resguardar do Sol, e de luvas de algodão para não estragar as mãos com o sacho, carpia e semeava, plantava e transplantava, sozinha, as flores do seu éden. Meu pai fazia troça dizendo que ela ia ao jardim de luvas, e à sala de tamancos. Minha mãe sorria um sorriso inexpressivo prosseguindo na lida. Então, numa enternecida mistura de amores, plantava uma roseira para cada um de nós, e a protegia contra as formigas, e a cultivava com mais carinho. Se a roseira medrava, era um encantamento, se morria, plantava outra.
Quando o sabiá que vinha pelos setembros se aninhar em nossas árvores, cantava pela primeira vez, anunciando sua presença, minha mãe dizia: “O sabiá chegou, as rosas não tardam”.
O cultivo da horta, que só lhe exigia a direção, cabia a João Moleque, escravo de aluguel, africano ainda bárbaro, miúdo, figura de macaco. Mas as laranjeiras e pessegueiros, figueiras e ameixeiras, viviam por si mesmos, florescendo e frutificando na boa terra em que nasceram.
Da horta nos vinham, num verde tenro e seivoso, as ervas para a mesa, os legumes, os cheiros para o tempero, e para a suave terapêutica dos chás, as médicas folhas da salva e da cidreira, do poejo e da hortelã, da murta e do alecrim, estimadas ervas que nos vieram dos prados de outra terra, nos rastos da nossa gente antiga.
A conformada e singela educação de minha mãe, a par dos limitados recursos da família, acomodavam-nos um lar simples, quase desprovido. Nossos móveis eram escassos, os pequenos dormiam dois a dois na mesma cama. Meus pais não mostravam o gosto da ornamentação da casa; permitiam que pendurássemos gaiolas nos portais e, à exceção das paredes pintadas da sala de jantar, nada mais se via, a não ser, no quarto de dormir do meu pai, um quadro emoldurado em cedro, representando a Virgem Aparecida.
Vivíamos sem aparato, como, afinal, toda a gente da terra. Ninguém sobressaia por primor ou conforto das instalações domésticas; todos éramos remediados, igualmente simples, ignorando comodidades. Contudo, as nossas salas de visitas, destoando singularmente dos interiores desleixados e feios, ostentavam certo luxo de ornamentação: quadros, candelabros, consolos e mobílias de arte; mas permaneciam fechadas, reservadas, desertas – mirrada borbulha do bom gosto, que não chegou a produzir as flores, nem os frutos da educação.
Nossa casa, apesar de grande, aumentava-se continuamente porque, à medida que íamos crescendo, e minha mãe o exigia, meu pai mandava fazer puxados, multiplicando ou ampliando os quartos, reformando divisões. Em suma, era como quaisquer das casas de Pousoalegre: mal construída, com janelas de pesadas vidraças de levantar, de cozinha primitiva, atijolada, negra de fuligem, com o fogão enorme, devorador de toros, e a sua candeia espetada na parede.
Assim era a casa de meu pai e da sua geração; nela nasci, cresci, vivi por muito tempo, e por um triz não morri. Foi a única posse da família, e jamais sob seu teto se disse que pertencera a outrem. Lar sempre nosso, integralmente nosso, desde os esquecidos tempos em que meu pai, como a semente levada pelo vento, deixou Silveiras das sete colinas e dobrou os cimos da Mantiqueira, para enraizar-se em Pousoalegre, no canto do Largo da Matriz.

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Todos os seres da criação se reproduzem em pleno dia, no seio das primaveras. O homem é o único que procura o silêncio e a treva – esconde-se para cometer o crime da geração. Feia prática que deu ensejo àquela enfezada imprecação de Job: “Maldita seja a noite em que se disse: um homem foi concebido!... “Um parêntese: este conhecimento bíblico não remonta à minha infância; naquele tempo eu sabia apenas que Adão fôra feito de barro, isso mesmo porque meu pai costumava dizer aos filantes: “Adão foi feito de barro – quem fuma traz cigarro”.
Pois apesar de concebido, provavelmente em noite de junho, e nascido com certeza em noite de março... Apesar de queixoso dos homens e já descontente com a sociedade, tal como o aborrecido Job, não chego a maldizer a minha origem nem o meu advento. Sou criatura de março, devo-lhe as virtudes acomodadas ao mundo, e a sina de viver na incerteza. Março é o mês indeciso entre uma estação que se acaba e outra que começa; mês em que caem as folhas das árvores e as penas das aves; tempo de repouso das raízes e da germinação; terra sem verdes, céu sem azul, quadra da espera e da esperança.
Mas quando abril chegou com suas manhãs trazendo passarinhos, e as suas aragens trazendo ar e mais ar dos confins do mato, já não me encontrou feiúdo e nu, tal como vim ter ao mundo naquela arriscada noite de março. Achou-me lavado de corpo e culpas, investido do nome dos nossos maiores, entre irmãos, instalado nos meus domínios – uma casa alegre, concentrada na varanda enorme onde chapinhávamos a chuva que caía das goteiras partidas, jogávamos o burro, ouvíamos histórias, ou cantava-se em coro ao embalo da rede... Uma varanda que se enchia de cantigas, trovas, xácaras e recitativos; nada, porém, aprendido com a gente de Pousoalegre, tudo vindo de longe, trazido pelos avós paternos de genuínas fontes portuguesas, assim como o que nos ensinava nossa mãe trazia o cunho paulista; o tisne das senzalas do Paraíba.
Mas, afinal, os acontecimentos relativos à vinda de um pequeno ao mundo não passam de ligeira peripécia na enredada crônica dos Queirozes em Pousoalegre, originários de terras de além-mar, de duro caráter, autoritários, irreverentes, que me levaram por um caminho talvez diferente do meu próprio.
Meu pai era de sangue português nunca misturado com os sangues desta terra. Minha mãe, segundo a história da parentela, descendia do famoso caçador de Cataguás – Jaques Felix chamado – cuja ascendência é disputada por muita gente mestiça, que, à falta da sua, invade a prosápia alheia.
Desse tronco de geração provieram meu avô e seus cinco irmãos, filhos de antigo criador de gado, nos altos campos da Serra de S. Tomé, por onde correm o Caí, o Peixe e o Rio Verde. 
A friagem da serra em que, dia e noite, ruge e sibila a ventania; a solidão do ermo num dos mais belos panoramas do sul mineiro: horizontes sem fim, paisagens nunca imaginadas, descortinadas das alturas; a visão das distâncias, que alonga o olhar e abafa os sentimentos no mais íntimo do peito, ficaram na alma dos meus antepassados mineiros, alimentando a sua ingênua crença, o seu conchego doméstico e, no silêncio vagaroso das noites de frio, o costume do tacho grande com o braseiro na varanda, e o gosto das histórias encantadas, das lendas, dos mágicos, dos sábios e dos guerreiros.
Quando o estacionário século passado alcançou em paz o seu primeiro quartel, os Felix da Serra de S. Tomé estabeleceram-se na vila de Silveiras, cercada de sete montes, entre o Paraíba e a grande montanha. Dois deles se fizeram padres – um revolucionário liberal, outro bonachão; o terceiro tornou-se rico e régulo, o quarto acabou sacristão, o quinto romancista e meu avô, Cândido Felix, conservou-se o homem pacífico, meditativo – ânimo de criador de reses nas verdes amplidões.
As singularidades do gênio de minha mãe, sua imaginação ardente e alma indecisa entre o desgosto e a melancolia, o sonho e a realidade, a fé e a indiferença; entre este e um outro mundo estranho, foram – quem sabe? – a expansão de emoções ancestrais, misteriosamente recalcadas ao zunir dos ventos na montanha, lá onde ora a névoa esconde, ora o sol branqueja, o serrano arraial de S. Tomé, solitário numa escarpa do monte.
Meu pai manteve inteiro e constante o portuguesismo de seu pai e de sua mãe, filha de um padre também bastardo, vindo de S. Tiago de Mouquim. Viveu ela pouco mais que o tempo de instruir os filhos e morreu legando-lhes o sentido da comunhão doméstica, o desapego da vida social, e uma boa dose de indiferença religiosa.
Meu avô Policarpo – o genearca da família – genuinamente português, deixou o próprio pai, plebeu e legitimista, para acompanhar o tio, Joaquim José de Queiroz, rico e nobre, cabeça dos Queirozes no tempo de D. Miguel. Dizem as crônicas de Portugal que este tio foi juiz culto e reto, desembargador, liberal ardoroso e acabou – revolucionário indômito – punido com o desterro na Inglaterra. Mas os liberais venceram por fim e o bravo juiz de Aveiro foi recompensado com lugares de relevo na justiça e na administração do Reino, embora fosse ateu e maçom. Quanto de bem e de mal lhe sucedeu no decorrer da existência ­– esbulho, prisão, exílio, a pasta de Ministro da Justiça e o foro grande de fidalgo cavaleiro – veio de seu gênio, de sua conduta e do combate que travou com o usurpador.
Em companhia de tal homem viveu o avô Policarpo desde a infância, recebendo dele educação, ideias políticas e sociais, instrução e certa vaidade: deve ter herdado do tio meio misantropo, a tendência para o viver solitário, sem amigos, sem confidentes.
Com semelhantes princípios, cabeçudo e surdo a certas considerações, o avô Policarpo embarcou-se a viver para sempre no Brasil. Tanto o incitava o nomadismo tradicional dos seus, como o amor próprio e os desgostos da pátria e da família, nunca revelados a ninguém. Um primo português, natural de Lousã, afirmava que os Queirozes se espalhavam de suas terras de Aveiro, “por aqui e acolá, salpicando de parentes” todo Portugal, de Trás-os-montes ao Algarve. Também os de cá foram andejos. O velho Policarpo, apenas aportado procurou S. João d’El Rei, depois o Itajubá; dali foi ter a Silveiras em São Paulo, para tornar finalmente a Pousoalegre, em Minas. Meus tios andaram de cidade em cidade sem se fixarem em nenhuma, um deles chegou a residir em oito – este era emérito amador de teatro; o ator é sempre um andejo.
Foi comum entre a nossa gente a vocação para o teatro. Em Portugal, além de outros que figuraram como amadores, um antepassado foi ator nos teatros e Lisboa, e escreveu quarenta e oito dramas, representados no seu tempo. Irresistível a veia teatral da família – avô, pai, tios, e os da minha geração representávamos frequentemente no teatro de Pousoalegre, mandado construir por meu tio Luiz de Queiroz.
Não só no gosto pelo teatro se mostrou o gênio artístico dos Queirozes de Pousoalegre, também nas letras e na pintura. Meu pai, profissional assíduo e diligente, foi um curioso e dispersivo artista que se deixava levar pelos caprichos da mais caprichosa fantasia. Além de farmacêutico, estudava e exercia a medicina, conhecia a história, lia tudo e escrevia artigos para os jornais da família. Foi monarquista intransigente, político combativo e destemido; conhecia a arte tipográfica, trabalhava a madeira, sabia música, desenhava, pintava figuras, paisagens, decorações, cenografia, e compunha as tintas e vernizes de que se utilizava. Mas, dos seus difíceis e cuidados trabalhos, jamais colheu proventos; concebia-os, executava-os com paciência e amor, e dava-os de presente ao primeiro que o lisonjeasse com a sua admiração.
Por fim, chegou a pintar tanto, que acabou comprando uma máquina de misturar e moer tintas – a primeira que entrou em Pousoalegre. Com o andar do tempo ela perdeu o dono; corria de casa em casa, de obra em obra, onde quer que se lidasse com tinta de óleo. Serviu indistintamente a liberais, conservadores e republicanos, a pobres e ricos, e tanto, em suma, foi útil ao povo que acabou pertencendo à comunidade. Quando se proclamou a República, a Câmara Municipal arrecadou-a, mandou substituir a velha mesa em que era instalada e por lei arrolou-a entre os próprios municipais. Nem por isso deixou a patrícia máquina de tintas a sua vida errante: ainda por alguns anos serviu aos pintores de Pousoalegre, até que, um dia, desapareceu comida de ferrugem, no esquecido montão das coisas que não prestam mais. 

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Meu pai, por ser abolicionista, não tinha escravos; nossas criadas eram duas pretas alugadas, a servente e a cozinheira.
Certas mulheres de Pousoalegre, ricas ou viúvas, viviam do aluguel de escravas. Dispunham de pretas e mulatas especializadas em misteres domésticos – engomadeiras, doceiras, cozinheiras e mucamas. O preço do aluguel correspondia ao serviço, às qualidades pessoais e o bom nome que as escravas adquiriam entre as famílias.
E as matronas, viúvas ou ricas, com ótima renda garantida, matavam o seu tempo fazendo bordados e crochê, plantando hortas e jardins. Mas bordados crochês com seus desenhos, hortas e jardins  com suas ervas e flores; eram sempre os mesmos, iguais uns aos outros, porque em Pousoalegre tudo se repetia, por cópia ou imitação. Os moldes e modelos, as mudas e as sementes, conservavam-se através dos anos, porque não vinham outros de fora, nem coisas novas a modificar os costumes. A população mantinha-se, levava-se vida igual, não se mudava de mister. Padre, médico, boticário, sacristão, alfaiate, parteira, vendeiro, lojista, sapateiro, envelheciam e morriam no ofício. Não se via gente de outras plagas, os únicos vindiços eram as crianças, que nasciam com abundância...
Em casa trabalhávamos todos, nossa mãe nos dava o exemplo e as ordens. O irmão mais velho, destinado a cursar academia, pouco figurava na existência doméstica, passava seus dias de primogênito estudando ou passeando pela cidade. A casa não o atraía; era o temido e o respeitado, tanto que puxava as orelhas do Quim e do rapazinho mineiro.
O Quim, sardento como judeu, não cuidava de coisa alguma, lia livros e tinha uma caixinha de tintas com que pintava aquarelas, molhando o pincel na língua. Minhas irmãs varriam a casa, estendiam as camas, punham a mesa; eu trabalhava com meu pai, lavando vidros e pincéis, fazendo coisas miúdas da profissão e ajudava minha mãe na lida do jardim. O almofariz grande em que se pisavam as folhas e raízes medicinais para o preparo das tinturas; o esterco e o sacho para o cultivo das flores, eram-me igualmente familiares.
Todavia, nossa existência não se limitava ao seio da família; frequentávamos as casas dos tios, vivíamos em contato com os primos numerosos; e com os estimados escravos que os serviam. Nós os queríamos com afeição porque eles nos pagavam os agrados, com agrados e cuidados. Os escravos daquele tempo foram os últimos que se identificaram com as crianças; minha geração também foi a última a receber a influência deles.
Além da convivência com os parentes, nenhuma outra mantínhamos com qualquer das famílias do lugar, embora fôssemos muito procurados. Nosso divertimento público era invariável: passeávamos pelos arredores da cidade em companhia de meu pai, quando as tardes eram bonitas; às vezes minha mãe nos acompanhava, então o passeio se limitava à capelinha do morro. Lá chegados, meu pai e minha mãe sentavam-se à porta da capela e permaneciam silenciosos, contemplando a paisagem dos montes, enquanto corríamos ou subíamos nas pedras amontoadas em roda do cruzeiro. Depois, ia-se entristecendo a tarde, e quando regressávamos já as sombras se espalhavam pelas ruas desertas. Mal entrávamos em casa, soava a primeira badalada da Avemaria, e a voz do sino, ampla e ressoante, enchia os ares da praça, transbordava, espalhava-se por sobre o povoado, perdia-se ao longe, no escuro dos campos. Hora triste dos alegres dias da terra natal, hora sombria das contrições... Enquanto o sino tocava, os homens que transitavam pelas ruas se descobriam, as mulheres benziam-se acendendo as luzes da casa, e as crianças corriam à procura dos pais para tomar a benção.
Afora os divertidos e ligeiros trabalhos domésticos e da horta, tínhamos a obrigação e disciplina da escola do avô Policarpo. Vivia ele quase só, tendo apenas por companhia, à noite, seu escravo Teófilo, alfaiate que trabalha fora durante o dia. Residia na pequena casa contígua à de minha tia Felizarda, onde almoçava e jantava. Na sala, ao lado de seu quarto de dormir, instalou uma escola, mobiliadas com cadeira de pau e com a mesa em que permanecia sentado, lendo enquanto estudávamos as lições.
Ali era a Escola do Avô, onde doze crianças, primos e primas, aprendíamos a ler. Nada tinha de familiar a original escola, nada das intimidades de avô com netos, mas tudo de classe regular; o ensino, a disciplina e a “Santa Luzia” pendurada no alto do portal – simbólica e virgem palmatória, que só tinha o préstimo dos fantasmas: amedrontar crianças. Lá era a escola aonde íamos diariamente, que deixávamos à hora certa, em que permanecíamos mudos e respeitosos diante do mestre, velho carrancudo, de sobrancelhas aguçadas para cima – o nosso querido avô. Pontualmente, ao meio dia, interrompia-se a aula, comíamos os doces e biscoitos da merenda; o avô desmanchava a carranca, sorria contente, nós o rodeávamos, ele nos contava histórias como a do Ali-Babá, ao mesmo tempo que nos ia limpando ou aparando as unhas, com a sua tesourinha de bolso. Outras vezes permitia às meninas folhearem um grande livro de figuras, e aos meninos jogarem a malha na rua, à sombra da casa, com ferraduras velhas que se guardavam atrás da porta.
Doze crianças que, por falta de colégio, aprendíamos a ler, escrever e contar, com um velho mais que sexagenário, o qual nos tratava como mestre e nos amava como avô: ora sorrindo um feliz sorriso, ora mostrando feia carantonha... Essa foi a minha primeira e única escola, dela por diante nunca mais estive noutra, nem tive outro professor. Não sei o que seja um colégio, uma classe, um colega... Tanto se dedicava meu avô à sua escola e a seus livros, que pouco tempo lhe sobrava para passeios e visitas à casa dos filhos, salvo a nossa aonde ia diariamente tomar o café matinal e conversar com minha mãe que lhe granjeava as preferências. Nunca disse ele a ninguém que sabia os ofícios de cabeleireiro e o de alfaiate, mas ensinou-os a minha mãe, e ela nos fazia as roupas e era quem cortava habitualmente os cabelos dele, de meu pai e o nosso. Quando pacientemente a ensinava cortando panos em cima da mesa de jantar, nós a rodeávamos turbulentamente curiosos. E minha mãe, para se ver em paz, nos mandava cantar cantigas de Portugal. As meninas corriam para a rede, eu embalava, e elas cantavam “A saloia”:

Minha mãe era saloia
Eu com ela me criei
Vamos cantar a saloia
Já que outra moda não sei

Sou saloia, trago botas
Também trago o meu mantéu
Também tiro a carapuça
A quem me tira o chapéu

Oh, saloia, dá-me um beijo
Que te darei um vintém
Que os beijos duma saloia
São caros mas sabem bem.

Embora gostasse de nossa casa, e lá passasse muitas das suas horas, meu avô jamais se mostrava homem íntimo na intimidade da família; foi sempre cerimonioso e frio. Não viveu em boa paz com minha avó, não se amaram, e parece que nunca se entenderam. De certo, por isso ele achava impossível o acordo entre casados, pois costuma dizer: “Quer que se entendam? Mande o marido para o norte, e para o sul mande a consorte”.